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Passei décadas me julgando doente mental, me condenando, me reprimindo e me punindo, como se eu fosse uma criminosa, afrontando e descumprindo nefastas normas de conduta social a fim de ser eu mesma. Alguém pode imaginar o tormento psíquico de ser obrigada a me mostrar publicamente como alguém que eu não sentia ser? O permanente estresse e o altíssimo custo emocional de negar, fingir, bloquear e recalcar os impulsos e manifestações mais genuínos do meu próprio ser?
Minha libertação, tardia, foi antecedida por um infarte e pela (corajosíssima) decisão, tomada num leito de UTI, de peitar a sociedade e suas convenções podres e hipócritas. E aí o custo foi mais alto ainda: além de quase perder a própria vida, perdi a profissão de consultor organizacional, que exercia com dedicação e eficiência por mais de 25 anos, e quase perdi a família que eu construí e que tanto amo.
Buscando me livrar do mal que a sociedade tinha me causado por tanto tempo, de novo a sociedade me causava outro grande mal. Dessa vez para vingar-se, com o máximo de rigor e crueldade, da minha ousadia em cair fora do jogo opressor de gênero, que mantém todo mundo escravo dos padrões de conduta impostos pela sociedade em função do órgão genital de cada pessoa.
Fui rejeitada e excluída até pelo gueto transgênero, que recebeu com total estranheza e repúdio não só a minha transição tardia, na casa dos 50 anos, mas especialmente eu me assumir como trans lésbica e querer manter meus papéis familiares de marido, pai e avô, um horror para a mentalidade da época (que ainda continua firme e forte, ameaçando e assustando fundamentalistas de gênero). Sobrevivi ao infarto, à transição de gênero, à perda da profissão, ao desprezo, exclusão e invisibilização por todos os meus antigos clientes, à rejeição sofrida até mesmo de dentro do gueto trans, onde eu esperava encontrar algum apoio e acolhimento e só encontrei condenação e repúdio.
Em anos e anos de análise, tratei, e ainda trato, de cada uma dessas minhas imensas e doloridas "feridas sociais". Consegui me reerguer e me equilibrar como pessoa nesse mundo, capaz de viver, conviver, trabalhar e desfrutar a vida. Mas as marcas, tanto do campo de concentração quanto da minha difícil saída dele, ficaram tatuadas para sempre na minha alma. São elas que me lembram o quanto a sociedade pode ser malvada, cruel e vingativa com quem se nega a cumprir cegamente suas tolas e esdrúxulas normas de conduta de gênero. São elas que ainda me fazem "balançar e sofrer", cada vez que percebo que o tormento na verdade ainda não acabou, nem vai acabar nunca. Por mais que eu esteja centrada, tem sempre um comentário, um olhar atravessado, um gesto de descortesia e desprezo querendo fazer com que eu me sinta como uma delinquente por ter assumido ser mesma.
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