terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Normalidade, Estigma e Diversidade Sexual e de Gênero

 

NORMALIDADE, ESTIGMA E DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO

Implicações do determinismo social na vida das pessoas

                                  Letícia Lanz, 19-12-2023

            I.  A NORMALIDADE É UMA IMPOSIÇÃO DO
                IMAGINÁRIO SOCIAL

1.      Sociedade é um sistema repressivo por definição. Não existe sociedade sem repressão e a maior parte da repressão não é realizada pelas forças de repressão, mas silenciosamente pela NORMA.

2.      Como observaram Freud, pai da psicanálise, e Durkheim, fundador da sociologia, Sem Norma Não Existe Sociedade. A vida em sociedade só é possível mediante o processo de NORMALIZAÇÃO, ou seja, da instituição de NORMAS que regulem cada um e todos os aspectos da vida em sociedade.

3.      NORMALIZAR é estabelecer ORDEM, através da padronização de condutas, da sistematização de atribuições e papeis sociais dos indivíduos, do estabelecimento de interdições e proibições, da imposição e cobrança permanente do cumprimento de convenções, regras, costumes, princípios, valores, identidades, expectativas de desempenho, etc.

4.       Ao NORMALIZAR, a sociedade estabelece uma distinção absoluta entre o que deve ser considerado NORMAL – ou seja, convencional, sancionado e aceito – e o que é ANORMAL – ou seja, o que é considerado patológico, sociodesviante, não-conforme, transgressivo e anti ou não convencional.

5.      Normal, portanto, é o que é aprovado pela ordem vigente. Você é normal quando faz o que a norma manda, quando se mantem fiel e submisso à normalidade estabelecida pela ordem vigente, ainda quando tais determinações vão de encontro a qualquer manifestação considerada natural no indivíduo.

6.      Normal é quem aceita, de forma passiva, o que o sistema nos impõe, sem nenhum questionamento ou posicionamento crítico. Ao confrontar, nos opor e questionar as normas, seremos considerados inconvenientes e anormais, ou seja, fora das normas e, por causa disso, seremos objeto de duras sanções da sociedade.

7.      A NORMALIDADE é um conjunto de dispositivos de controle social. É ela que nos castra e nos impede de realizar nossas próprias identificações e escolhas.

8.      É a NORMALIDADE – não a natureza – que estrutura nossos corpos, nossos pensamentos e nossas ações a partir da ideologia dominante em uma dada sociedade e época.

9.      A NORMALIDADE é, portanto, quem cria categorias de indivíduos NORMAIS e de indivíduos ANORMAIS, especificando características próprias e exclusivas para cada identidade criada e submetendo-as a hierarquias.

10.  Por não ser inato, isto é, diretamente herdado da natureza, os indivíduos de todas as gerações deverão ser permanentemente obrigados a aprender, se conformar e seguir obedientemente o CÓDIGO DE NORMALIDADE estabelecido pela sociedade de uma determinada época e lugar.

 

 

II. ESTIGMA SOCIAL COMO GERADOR DE ESTEREÓTIPOS E PRECONCEITOS

11.  AS NORMAS E EXPECTATIVAS SOCIAIS desempenham papel central na criação e na perpetuação dos estigmas sociais. Tudo que é socialmente transgressivo, interditado, proibido ou seja, tudo que esteja fora das normas e, portanto, da normalidade, torna-se objeto de estigma.

12.  As normas criam pressão para a conformidade, abrindo caminho para estigmatizar quem se desvia do que a sociedade considera como normal.

13.  A primeira coisa a se observar é que o estigma não é algo inerente à pessoa mas aos padrões de organização de uma dada sociedade em uma dada época. Dessa forma, o estigma muda com o tempo e com o lugar, podendo variar imensamente de sociedade para sociedade e de época para época.

14.  Ser uma pessoa negra ainda contém um estigma muito grande assim como uma pessoa pobre, uma pessoa periférica, uma pessoa LGBT+, uma pessoa indígena, uma pessoa idosa, uma pessoa com limitações físicas e/ou intelectuais, etc.  Felizmente, não há mais estigma em ser uma mulher divorciada, que há menos de 50 anos era um pesado estigma sobre a mulher (mulher separada), assim como ser mãe solteira não carrega mais o estigma social de antes.

15.  O estigma também pode ser descrito como um rótulo que associa uma pessoa ou grupo a um conjunto de características socialmente proscritas e indesejadas criando um estereótipo e um preconceito. Uma vez que uma pessoa seja identificada e rotulada dentro de um estereótipo, todo mundo assumirá que é assim que a pessoa é.

16.  E ela permanecerá estigmatizada até que o atributo estigmatizante seja eliminado da matriz identitária vigente na sociedade. Nem é preciso dizer que isso poderá levar muito tempo, ou nem ocorrer, dependendo do grau de resistência da sociedade assim como da capacidade social de se educar e reeducar seus membros.  

17.  Independentemente do quanto uma pessoa se enquadra num dado estigma, o que prevalece é o rótulo que recebe como pertencente ao grupo estigmatizado.

18.  O estigma social encarna toda a cesta de maldades que a ordem vigente guarda para os indivíduos fora dos seus padrões de normalidade. Membros de grupos sociais estigmatizados enfrentam preconceitos que lhes causam muita angústia, ansiedade e depressão, podendo levar ao suicídio. A taxa de suicídio entre pessoas transgêneras chega a ser 4 vezes maior do que entre a população cisgênera.

19.  O estigma social tem um enorme potencial traumático, capaz de debilitar, inibir e impedir o crescimento pessoal e o bem-estar do sujeito estigmatizado. Alguns dos efeitos do estigma sobre as pessoas e grupos estigmatizados incluem:

1 – baixa autoestima e senso de menos valia.
2 – crença de ser uma pessoa é doente, pecadora, criminosa e/ou socialmente
      inadequada.
3 – raiva e rebeldia difusas e mal direcionadas
4 – vergonha, humilhação, invisibilidade, isolamento, abandono e desesperança

      5 – relutância em se expor e em participar da vida da comunidade (armário...)
6 – desprezo e falta de compreensão por parte da família, amigos, colegas de       
      trabalho e outras pessoas e grupos da comunidade
7 – corte drástico de oportunidades de emprego e de interações sociais
8 – intimidação, assédio, violência moral e violência física
9 – dúvida e autodesconfiança de que a pessoa nunca superará os obstáculos sociais que
      são colocados diante dela e nunca será capaz de alcançar o que deseja na vida.
10 – distonia existencial (personalidade egodistônica)
11 – altas taxas de suicídio

III. SEXO, GÊNERO E ORIENTAÇÃO SEXUAL

20.  Definitivamente, nós, seres humanos, não somos produto da natureza.

21.  Embora as pessoas acreditem que são dotadas de livre arbítrio, Todas as nossas escolhas já são previamente definidas e codificadas em função do nosso sexo de nascimento.

22.  Somos resultado de um sistema sociopolítico-econômico-cultural que nos molda como indivíduos e que compulsoriamente nos obriga a nos comportar de acordo com as definições e determinações da ordem vigente.

23.  O fato é que vivemos sob a tutela permanente e implacável de dispositivos sociais de controle - opressivos, alienantes e castradores.

24.  Um desses dispositivos de controle – com certeza o mais poderoso, opressivo e onipresente de todos é dispositivo que chamamos de GÊNERO.

25.  GÊNERO é a apropriação e ressignificação social do sexo biológico. Através da extensão do uso do sexo das pessoas – macho ou fêmea – para muito além das funções puramente reprodutivas previstas pela natureza, o gênero é responsável pela construção e manutenção da identidade de homem e de mulher, bem como das relações entre eles.

26.  É por meio da ressignificação social do sexo biológico que as pequenas diferenças anatômicas naturais existentes entre o macho e a fêmea são transformadas em atributos, papéis sociais e expectativas de desempenho, formando as duas categorias de gênero que fundamentam a própria organização jurídica, econômica, cultural e religiosa da sociedade.

27.  Nossa percepção de gênero – assim como de sexo e de orientação sexual, duas outras variáveis atreladas a gênero – está inexoravelmente determinada pela sociedade em que vivemos, não pela natureza que nos criou.

28.  Não existe nenhuma relação direta entre ter nascido macho e ser homem ou ter nascido fêmea e ser mulher. Não existe nenhuma relação direta entre ser homem ou ser mulher e ter orientação sexual hétero.

29.  A sociedade impõe uma identificação “absolutamente forçada” aos indivíduos,  que têm que aprender compulsoriamente a ser homem ou mulher de acordo com o seu sexo biológico de macho ou de fêmea.

30.  A famosa afirmação de Simone de Beauvoir, que ninguém nasce mulher, mas aprende a ser, deve ser estendida: NINGUÉM NASCE HOMEM OU MULHER. Nasce MACHO, FÊMEA, INTERSEXUADO e NULO. A natureza cria um organismo biológico e, em função desse organismo biológico, a cultura cria um ser social.

31.  O corpo é natural; o gênero é social. Ser homem e ser mulher não passa de uma longa e contínua aprendizagem compulsória de padrões de conduta estabelecidos pela ordem vigente.

32.  Sem o contínuo adestramento e condicionamento social, do berço ao túmulo, nem o macho se torna e se mantém homem, nem a fêmea se torna e se mantém mulher.

33.  O dispositivo binário de gênero está tão profundamente arraigado na sociedade que dispensa qualquer tipo de explicação ou justificativa. O gênero se impõe como auto-evidente, natural e universal, embora seja absolutamente artificial e arbitrário.

34.  O binarismo homem/mulher ou masculino/feminino está tão naturalizado e tão internalizado na vida das pessoas que é como o ar que respiramos. Ninguém se dá conta da existência do ar a menos que seja impedido de respirar. Ninguém se dá conta da presença desse binarismo até que a sua identidade de gênero seja questionada: afinal de contas, você é homem ou mulher?

35.  Colocar em dúvida se alguém é homem ou mulher faz com que a pessoa entre imediatamente em sofrimento, como se estivesse sendo privada de respirar.    Se a oposição hierárquica, binária, entre homem e mulher, ou masculino e feminino, permanece ancorada na ordem natural das coisas é porque encontra eco no comportamento diário das pessoas.

36.  Ou seja, no dia-a-dia, as pessoas asseguram, por meio das suas próprias práticas e rotinas de vida, que essas oposições existam, além de exercerem uma contínua vigilância de umas sobre as outras para que esses procedimentos sejam rigidamente mantidos.

37.  É necessário lembrar que, para a sociedade, só existe homem e mulher e nenhuma outra categoria de gênero. A sociedade está construída sobre esse binarismo de gênero.

38.  Se o sexo (ainda) inexoravelmente fixo, gênero é, em essência, totalmente fluído. É este aspecto altamente insólito e mutante do gênero que enfurece os fundamentalistas religiosos e os essencialistas de sexo.

39.  Quer dizer que, independentemente do sexo de nascimento de uma pessoa, ela pode mudar de gênero quantas vezes quiser ao longo da vida? Pode sim, o que não significa que ela fará isso automaticamente, ou frequentemente, como um estilo de vida.

40.  O que está sendo mostrado é que, em princípio, qualquer pessoa pode mudar o seu gênero, sim, a qualquer tempo. Mas, se mais pessoas não mudam hoje em dia, é devido à forma opressiva como o gênero se impõe às pessoas, por meio de duríssimos mecanismos de repressão, terrorismo e vigilância social.

41.  Acredito que, se não fossem esses mecanismos autoritários, GÊNERO NEM EXISTIRIA MAIS COMO UMA CATEGORIA DE NORMALIZAÇÃO, CLASSIFICAÇÃO, HIERARQUIZAÇÃO E CONTROLE DOS INDIVÍDUOS.

42.  Dizemos que uma pessoa é CISGÊNERA quando ela vive em conformidade com a categoria de gênero que lhe foi designada ao nascer, em função do seu órgão sexual exposto. Ou seja, se nasceu com um pênis e vive em conformidade com o gênero masculino, para o qual foi designada ao nascer em função. Ou, ainda, se nasceu com uma vulva e vive em conformidade com o gênero feminino, para o qual foi designada ao nascer.

IV. SÍNTESE FINAL

43.  Vimos que o que chamamos de NORMALIDADE não passa de CONFORMIDADE EXPLÍCITA ÀS NORMAS VIGENTES.

44.  O capitalismo e a industrialização trouxeram uma paixão obstinada por ciência e medição científica, capazes de identificar, classificar e categorizar transtornos mentais capazes de configurar a degeneração da civilização.

45.  Pode-se argumentar que a história da estatística como uma disciplina acadêmica começou com o estudo da anormalidade, da patologia comportamental. E mais cientistas reuniam estatísticas, mais doença parecia surgia. As próprias estatísticas, por sua vez, foram recebidas como verdades absolutas e irrefutáveis.

46.  Os médicos do século XIX começaram compulsivamente a manter estatísticas sobre todos os tipos de comportamentos tidos como “ANORMAIS”, a começar da insanidade mental (também chamada de loucura), da prostituição, do homossexualismo, da miscigenação racial e de outras formas de TRANSGRESSÃO DAS NORMAS e SUBVERSÃO DO NORMAL, por isso mesmo consideradas como doença, crime e/ou pecado.

47.  Indivíduos sociodesviantes de todos os naipes sempre foram objeto de estigma social e, consequentemente, objeto de todo tipo de estereótipos e preconceitos.  e euma pedra no sapato da “sociedade normal”, mas a partir do século XIX passaram a ser conceitualmente incluídos no novo mundo da ciência e da racionalidade. De olho na cura da anormalidade, os médicos acreditaram que os pacientes poderiam melhorar e, eventualmente, se reintegrar à sociedade se fossem primeiro separados de suas comunidades e colocados em novos espaços com novas regras e rotinas.

48.  A psicopatologia tornou-se o álibi perfeito para tratamento, vigilância e disciplina, tão necessárisa à manutenção dos corpos dóceis, submissos às necessidades do sistema capitalista.

49.  O HOMOSSEXUALISMO, até hoje chamado assim por grupos fundamentalistas e reacionários, foi uma das principais condições psicológicas que ajudaram a psiquiatria a se constituir e permanecer como método para regular o comportamento social dos indivíduos.

50.  Ao transformar a homossexualidade em doença mental na primeira metade do século XX, psicólogos e psiquiatras destacariam os perigos para a sociedade de não se isolar, vigiar, punir e tratar a sexualidade desviada, perversa, capaz de colocar em risco toda a NORMALIDADE existente.

51.  A partir da patologização e criminalização dessa forma de orientação sexual, os  homossexuais, como ainda hoje acontece, foram imediata e cruelmente associados à conspiração contra o estado, à instabilidade social, à dissolução da família, à decadência dos costumes e até à pedofilia.

52.  A Normalidade foi assim definida, em meados do século XX, por homens brancos, heterossexuais e cisgêneros e se destinava a descrever homens brancos heterossexuais e cisgêneros para homens brancos heterossexuais e cisgêneros.

53.  A pressão social para a “normalidade” é a essência da neurose. Nesta era da conformidade, onde todo mundo deseja ardentemente ser e parecer normal, ser diagnosticado com algum transtorno mental tornou-se fonte de muito medo, vergonha e culpa.As pessoas estão cada vez mais neuróticas porque são incapazes de acomodar a diversidade e a mudança.

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Lâminas Anexas


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