Ninguém é homem ou mulher porque é, porque nasce assim, como tolamente ainda sustentam adeptos da teoria de origem divina da pessoa humana, em que cada um já nasce pronto e predestinado a exercer papeis e funções na sociedade ou da teoria genética, onde o deus supremo é substituído pelo DNA e sua bagagem genética que, a priori, determina tudo que uma pessoa é ou pode ser nesse mundo.
A despeito do mito do “destino” prefixado pelos deuses ou do mito da carga genética contida no DNA, ao fim e ao cabo será sempre a sociedade, e somente a sociedade – o outro –, quem determina o eu. Ainda que o código genético pudesse – e um dia certamente poderá – ser inteiramente manipulado e alterado em laboratório, ainda assim um simples acaso ou descaso na “vigilância genética” produziria aquele “indivíduo beta” que avacalha toda a admirável “ordem vigente”, no romance Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.
A grande diferença entre os seres humanos e os outros animais do planeta é que os seres humanos nascem condenados a aprender a ser, enquanto todos os outros animais do planeta nascem programados para ser. Um cachorro sempre nascerá cachorro e sempre será um cachorro, quer ele nasça na China ou na Arábia Saudita. Em qualquer desses dois lugares, ele vai latir, abanar o rabo e morder, se for ameaçado. Já um ser humano que nascer na China e for criado na Arábia Saudita não será um chinês, mas um saudita, com tudo que isso significa: língua falada, roupas vestidas, crenças, valores, tradições, forma de organização sociopolítica e religião.
Não há como fugir do determinismo social, no caso dos seres humanos. O determinismo social é infinitamente mais forte e potente do que qualquer suposto determinismo biológico, “ingenuamente” depositado pela natureza na nossa carga genética.
O que somos, não é resultado de nenhum criterioso “planejamento biológico” da natureza, por sinal, altamente caprichosa e aleatória nos seus desígnios. Ao contrário, o que somos é resultado dos modelos de comportamento que nos são impostos pela sociedade – o outro – ainda dentro do útero das nossas mães quando, a visão de um pênis (ou a visão da ausência dele) na tela do aparelho de ultrassom, desencadeia um processo de socialização em que tudo já está meticulosamente determinado pela ordem social vigente: a cor do quarto (azul), a escolha do nome (Rodrigo ou Guilherme e nunca Bárbara ou Letícia), as roupas e adereços (sobriedade nas cores e feitios das roupas; laços e fitas estão fora da programação social baseada no pênis) e até o lado em que se abotoa uma camisa (esquerda sobre a direita para o homem; direita sobre a esquerda para a mulher.
As expectativas dos pais, da escola e da comunidade além, é claro, da marcante e definidora identificação da pessoa com os modelos de comportamento de homem e de mulher fixados pela ordem vigente, pesam muito mais do que qualquer ingênuo determinismo biológico, ingenuamente defendido por pessoas que simplesmente parecem querer negar o poder da sociedade na definição e modelagem dos seus próprios membros.
Ninguém nasce homem: aprende a ser. Ninguém nasce em “corpo errado”, como repete esse discurso ultrapassado, aborrecido e enfadonho, repetido mecanicamente por “profissionais” de saúde que ainda insistem em diagnosticar seus pacientes com “disforia de gênero” e outros “transtornos”. Como se não soubessem, do alto da sua notável ignorância, que, quem é doente não é a pessoa, mas a sociedade que obriga as pessoas a serem algo que elas não são em função da simples presença de um pênis no meio das suas pernas.
Não é a toa que muitas transexuais querem se livrar a todo custo do seu pênis, acreditando, ingenuamente, que serão 100% mulheres quando não mais o possuírem. Mas, infelizmente, como no título do meu livro O Corpo da Roupa, não é o corpo que determina a roupa mas a roupa (vestuário, normas de conduta, papeis socialmente estabelecidos, etc.) que determina o corpo que alguém deve ter para poder usa-la. Ou seja, há uma predominância total e absoluta do determinismo sociopolítico-cultural da sociedade em relação ao que a pessoa é, do ponto de vista estritamente biológico.
Os corpos não passam de cárceres das verdadeiras identidades individuais de cada pessoa. Verdadeiras clausuras em que os seres humanos são condenados a viver em função da malfadada instituição do gênero.
A liberdade humana passa portanto, necessária e fundamentalmente, pela libertação dos corpos do jugo temerário e insensato do gênero que impede, limita, interdita, bloqueia e proíbe a plena expressão da pessoa – única – que cada indivíduo é.
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