terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Dia da Visibilidade Trans - 29 de janeiro de 2020

Letícia Lanz
Já faz algum tempo que, no Brasil, o mês de janeiro vem sendo dedicado a campanhas de esclarecimento e debates sobre visibilidade de pessoas trans. Mas a primeira coisa que chama a atenção é que a maioria do público brasileiro não sabe exatamente o que é uma pessoa trans.

Graças à aguda falta de formação e informação que atinge o nosso país, muita gente acredita que “pessoa trans” é travesti e transexual, embora, também, a maioria não faça a menor ideia do que seja travesti e transexual.

Na verdade, pessoa trans não é nada do que dizem as crenças sem fundamento e informações mal veiculadas que circulam por aí. Pessoa trans é uma abreviatura de pessoa transgênera, ou seja, de pessoa que transgride a norma de gênero em vigor na sociedade. De acordo com essa norma, toda pessoa que nasce macho, ou seja, com um pênis, é classificada como homem. Da mesma forma, se a pessoa nascer fêmea, ou seja, com uma vagina, é classificada como mulher.

É importante perceber que macho e fêmea são determinismos biológicos da natureza que não podem ser alterados, enquanto homem e mulher são programações e expectativas de desempenho social arbitrados aos indivíduos pela sociedade em função exclusivamente do órgão genital que apresentam ao nascer. Chamamos de gênero a esse elenco de atribuições e comportamentos que a sociedade estabelece e exige o cumprimento em função exclusivamente do sexo da pessoa.

Quando há concordância, ou seja, quando não há nenhum tipo de conflito, entre o sexo biológico e o gênero de uma pessoa, é dizer, o macho se adequa às expectativas sociais e vive como homem e a fêmea se adequa às expectativas sociais e vive como mulher, ela é chamada de cisgênera, o que equivale dizer que o seu gênero (social) está de acordo com o seu sexo biológico.

Ao contrário, quando existe algum tipo de conflito ou discordância entre o sexo biológico e o gênero (social), dizemos que se trata de uma pessoa transgênera, ou seja, alguém que transgride o código de enquadramento e/ou as normas de conduta determinadas pela sociedade para a categoria de gênero – homem ou mulher – em que a pessoa foi classificada ao nascer em função do seu órgão genital.

Pessoa trans – ou pessoa transgênera, na forma não abreviada – é a alguém que por algum motivo, superficial ou profundo, transitório ou definitivo, “transgride” as normas do dispositivo de gênero em vigor na sociedade, ao contrário da pessoa cisgênera, que é aquela que vive inteiramente de acordo com as exigências desse dispositivo.

Por “afrontar” a sociedade e insistir em viver “fora das normas” de gênero, desde meados do século XIX a pessoa transgênera vem sendo sistematicamente tratada como “anormal” ou “doente” pela área de saúde, especialmente a medicina, que a considera portadora de distúrbio mental.

Apenas uma última informação: é óbvio que só existem duas e somente duas identidades cisgêneras: homem e mulher. No entanto, existe uma multiplicidade de identidades transgêneras, ou transidentidades, sendo que as denominações mais conhecidas no nosso país são travesti, transexual, transformista, dragqueen, crossdresser (CD), andrógino e não binário.

Dessa forma, eu sou uma pessoa transgênera, por ter nascido macho e nunca ter me ajustado nem correta nem completamente ao dispositivo de gênero que determinou que eu assumisse o papel de homem na sociedade. Em termos de orientação sexual, eu tenho atração por mulheres, o que faz de mim uma pessoa transgênera lésbica, já que orientação sexual e identidade de gênero são duas coisas totalmente distintas.

Sofri uma enorme repressão familiar na minha infância e adolescência para que eu me ajustasse à categoria de gênero que me foi atribuída ao nascer, o que fez com que eu vivesse como homem, sem gostar de ser e sem querer ser, até os meus 50 anos, quando iniciei a minha transição de gênero, depois de sofrer um enfarto e ficar sete dias na UTI.

Sou Psicanalista e Mestra em Sociologia, e também sou graduada em Economia, com mestrado em Administração de Empresas. Sou Especialista em Gênero e Sexualidade e tenho diversos livros publicados, sendo o mais recente O Corpo da Roupa – Introdução aos Estudos Transgêneros, que foi a primeira obra sobre transgeneridade originalmente escrita e publicada em língua portuguesa.

Sou casada, há 43 anos, com a mesma mulher, com quem tenho uma filha, dois filhos e cinco netos.

Quando transicionei, perdi toda a minha clientela, que deve ter se assustado muito com a minha mudança. Eu já esperava isso, já que as empresas no Brasil ainda estão muito longe de compreender que coisas como identidade de gênero e orientação sexual não são atributos que devem ser avaliados quando se trata de competência, produtividade e foco nos resultados.

Azar de quem não me quis. Hoje eu atuo como Psicanalista Clínica e talvez seja difícil conseguir um horário comigo, pois minha agenda está cheia. Como você vê, pessoas trans não têm o seu destino vinculado à prostituição e à marginalidade, como pessoas tão preconceituosas quanto mal informadas costumam acreditar.

Isso que eu acabei de mostrar a você chama-se Visibilidade Social das Pessoas Transgêneras. Espero que você tenha compreendido a minha história e seja capaz de me aceitar socialmente como eu sou: uma pessoa absolutamente comum.

Posso assegurar que sou tão boa profissional quanto qualquer profissional cisgênero da minha área. Aliás, eu sou tão gente e tão cidadã quanto qualquer pessoa cisgênera já que, graças à decisão do Supremo Tribunal Federal eu hoje carrego meus documentos com o nome civil de Letícia Lanz de Souza.






3 comentários:

Devânia disse...

Texto maravilhoso e esclarecedor.
Obrigada por sua participação na sociedade como propagadora de conceitos que desmascaram o preconceito.
Dê-me o prazer de compartilhar para mais leitores das Eudes sociais.

marli pereira da silva disse...

Parabéns pelo dia de hoje e sincero agradecimento pelo relato tão esclarecedor. Tomei a liberdade de compartilhar quadro a quadro (para quem não lê textão), pois a informação é necessária. Sou cis e desde muito cedo aprendi que Respeito é bom e não há quem não goste.Beijos

marli pereira da silva disse...

Parabéns pelo dia de hoje e sincero agradecimento pelo texto tão esclarecedor. Contigo aprendi muito e tomei a liberdade de compartilhar quadro a quadro (para quem não lê textão) em meu facebook, pois é necessário conhecimento para apreender que respeito é bom e não há quem não goste. Beijos