terça-feira, 6 de julho de 2021

É hora de um mundo sem gênero

Um mundo sem gênero é um mundo onde as pessoas podem ser quem elas são,
independentemente do formato dos seus órgãos genitais.
Daphna Joel*, Scientific American, 10-10-2019
(Traduzido e adaptado por Letícia Lanz)

A ideia de gênero está passando por uma revolução, à medida que identidades de gênero não convencionais ganham aceitação. Ao mesmo tempo, porém, virtualmente todo movimento social que se afasta do binário de gênero - como permitir designações neutras em relação ao gênero nos documentos - desencadeia uma reação contrária.

Essas controvérsias trazem à tona uma questão secular: quão fundamentais são as categorias de sexo? Os humanos pertencem “naturalmente” a um dos dois grupos – fêmea ou macho – que supostamente são distintos não apenas no formato dos seus órgãos genitais, mas também em seus cérebros e comportamento?

Para cerca de 1 por cento dos seres humanos, responder a essa pergunta afirmativamente causa muita dor física e emocional. Essas são pessoas intersex, nascidas com órgãos genitais dúbios; para essas pessoas, ser forçada a se enquadrar em uma das duas categorias de sexo geralmente significa enfrentar o ostracismo ou passar por cirurgias desnecessárias. Mas e quanto a todos os outros? Indivíduos machos e indivíduos fêmeas pertencem a duas classes distintas?

Estudos comparando grupos de mulheres e homens frequentemente encontram diferenças entre os dois. Alguns deles são pequenos (por exemplo, a compreensão de leitura das mulheres é, em média, ligeiramente melhor do que a dos homens); outras diferenças são grandes (por exemplo, a maioria das mulheres prefere um homem como parceiro sexual, enquanto a maioria dos homens prefere uma mulher). Pode-se argumentar ad infinitum se essas diferenças decorrem diretamente do sexo de um indivíduo (por exemplo, um resultado da exposição a altos níveis de testosterona no útero) ou das diferentes maneiras como a sociedade trata indivíduos machos e indivíduos fêmeas. Mas esse debate natureza versus criação é irrelevante para a questão: as mulheres e os homens pertencem a duas classes distintas?

Se assim for, então as características nas quais mulheres e homens diferem devem somar consistentemente dentro de cada indivíduo - assim como os órgãos genitais (a maioria dos humanos tem órgãos genitais que são todos masculinos ou femininos; apenas 1 por cento com órgãos genitais intersexuais têm uma mistura de os dois tipos). Mas as diferenças no cérebro e no comportamento entre homens e mulheres não se somam dessa maneira. Muito poucos indivíduos têm apenas características típicas de mulheres ou apenas características masculinas. A maioria dos humanos é uma mistura de ambos - um mosaico único de características típicas femininas e masculinas. 

Nossas pontuações em vários parâmetros neurais, psicológicos e comportamentais não somam consistentemente em qualquer pessoa. Em vez disso, eles se misturam. Você pode muito bem ter uma pontuação alta na capacidade de visualizar objetos geométricos, como é mais comum nos homens, mas ao mesmo tempo, você pode estar mais interessado nas pessoas do que nas coisas, como é mais comum nas mulheres. Você pode ser do tipo carinhoso e também bom em consertar as coisas. A lista de mosaicos potenciais é infinita.

Mas se os humanos são mosaicos de características, por que homens e mulheres às vezes parecem tão distintos? A resposta está na própria divisão binária. Mesmo que os humanos não pertençam a dois conjuntos distintos em termos de cérebros e comportamento, a divisão binária dos humanos em duas categorias sociais é real e exerce um efeito profundo sobre a maneira como nos comportamos e percebemos a nós mesmos e aos outros. 
 
O binário de gênero atribui diferentes papéis, status e poder aos indivíduos humanos machos e fêmeas, e diferentes expectativas em relação a seus comportamentos, preferências e características psicológicas. O dispositivo binário de gênero força uma população de mosaicos humanos a entrar numa camisa de força onde existem apenas duas opções.

Alguns dos efeitos dessa atribuição de função podem ser relativamente benignos - desencorajando as pessoas a arrumar a casa, cuidar de crianças ou dominar habilidades que podem ser consideradas como "inadequadas para a sua categoria de gênero". Mas muitos não são: mesmo em sociedades ocidentais com consciência de gênero, o binário afeta as escolhas profissionais de mulheres e homens; expõe as mulheres ao assédio sexual e de gênero; e deixa homens morrendo em massa em conflitos armados e em acidentes de trabalho.

É hora de se livrar do binário de gênero. É hora de começar a tratar as pessoas de acordo com seus mosaicos de características únicos, e não de acordo com a forma de seus órgãos genitais. É hora de um mundo sem gênero.

Um mundo sem gênero significa que a forma dos órgãos genitais de uma pessoa, seja ela macho, fêmea ou intersexual, não tem significado social - assim como ser destro ou canhoto não tem nenhum significado sociocultural inerente. Embora, não faz muito tempo, pessoas canhotas fossem consideradas menas capazes do que pessoas destras, e os pais forçassem suas crianças canhotas a usarem a mão direita. Não é por acaso que “direito” é um dos sinônimos de “correto”.

Os cientistas, por sua vez, procuraram por muito tempo os “déficits neurais” e/ou cargas genéticas responsáveis pela existência de pessoas canhotas. Ainda que não haja mais gente interessada em porque somos pessoas canhotas ou destras, até hoje as pessoas canhotas ficam frequentemente frustradas ao descobrir que muitas ferramentas, instrumentos musicais e outros objetos são projetados - e por isso são acessíveis - apenas para pessoas destras.

Um mundo sem gênero não significa que desapareceriam por completo as diferenças entre homens e mulheres. Mas em um mundo sem gênero, simplesmente não nos importaremos que a pessoa seja exclusivamente homem ou mulher.

E por que deveríamos? O que importa que haja mais pessoas com pênis ou vaginas entre os magos da matemática ou os aficionados da poesia? Algumas pessoas acreditam que o binário de gênero é uma consequência direta de haver duas categorias de sexo: machos e fêmeas. Mas mesmo se isso fosse verdade, forneceria um argumento ainda mais forte para nos livrarmos do sistema binário de gênero. Porque, se os efeitos do sexo são biológicos e, portanto inevitáveis, então certamente não haveria necessidade de um complexo sistema sociopolítico-cultural para lhe dar sustentação.

Um mundo sem gênero é um mundo no qual os humanos são encorajados a desenvolver todo o seu potencial humano. É um mundo em que características consideradas desejáveis para os humanos, como empatia e assertividade, são incentivadas em todos, independentemente da forma de seus órgãos genitais - e independentemente de terem dificuldade em adquirir essas características por causa de seus genes, hormônios, tratamento parental inadequado ou condições socioeconômicas. Ao mesmo tempo, crianças e adultos com características consideradas indesejáveis, como agressividade, são auxiliados na superação delas, independentemente da causa.

Um mundo sem gênero é um mundo no qual os humanos são livres para expressar plenamente seus talentos em todas as áreas, seja matemática, poesia, artes marciais - ou todas elas; em que os humanos são tratados de acordo com quem são, e não de acordo com os seus órgãos genitais. Um mundo em que a ideia de agrupá-los por seus genitais soa tão bizarro quanto agrupar pessoas de acordo com a cor de seus olhos, o formato do seu nariz ou a mão dominante.

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(*) Daphna Joel, PhD, é professora da Escola de Ciências Psicológicas e membro da Escola de Neurociências da Universidade de Tel Aviv. Ela é autora de Mosaico de gênero: além do mito do cérebro masculino e feminino (Gender Mosaic: Beyhond the Mith of the Male and the Female Brain).

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