Foi com ele que eu aprendi a ser gente e a ser pai, função social da qual eu jamais declinei, tamanha a força, a dignidade e a efetividade que ele me transmitiu, ao longo de toda a sua vida. E olha que não foram poucas as pressões para que eu renunciasse a esse papel, que os fundamentalistas de gênero quiseram de toda forma me confiscar depois da minha transição, em nome da “pureza” de identidades de gênero que defendem de forma ingênua, em nome de combaterem um sistema no qual tentam desesperadamente se encaixar.
Não sou “pãe”, contração esdrúxula e frankensteiniana de pai e mãe. Nem sou uma “segunda mãe” para a minha filha e os meus dois filhos. Nem “avó” para os meus três netos e duas netas. Muito menos “marida” da minha companheira. Sou pai, sou avô e sou marido, sim. Jamais teria sido de outra forma, dentro da ética existencial que aprendi com meu pai.
Como afirmo sempre, meu desconforto nunca foi com nenhum desses papéis sociais, mas única e exclusivamente com minha identidade de gênero. Tive que sofrer muito para compreender isso e não botar abaixo, não só a minha vida pessoal como a vida da minha família, em nome de me enquadrar em um sistema que me negou o ingresso e me repudiou a vida inteira por ser uma pessoa transgênera.
Ser mulher não tem nada a ver com exercer papéis sociais ditos “femininos”, assim como ser homem não tem nada a ver com desempenhar funções de machão. Ater-se à “estrutura normatizada da feminilidade” é reforçar o discurso normatizante de gênero. Onde a “estrutura central de gênero” é tão difícil de ser atingida, a tática de guerrilha vai desconstruindo o sistema binário de gênero pelas suas bordas.
É exatamente por essas bordas, por essas franjas do sistema que ele pode ser melhor e mais facilmente combatido. Foi ocupando paulatinamente essas franjas e bordas que as mulheres realizaram a maior revolução de todos os tempos: a revolução feminina. Por isso, são capazes de desempenhar hoje, simultaneamente, de forma irrepreensível, os papéis de pai e mãe, reconfigurando com elegância e competência, a própria ideia patriarcal e retrógrada de “família”.
Ser pai, avô e marido – sendo mulher – é minha modesta forma de contribuir com essa vitoriosa revolução da mulher, o único movimento capaz de mudar os destinos da humanidade.
Desejo feliz dia dos pais a todos os pais que, como eu, são mulheres e a todas as mulheres que, já sendo mulheres, são pais.
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