Tenho visto uma queixa geral de que as pessoas não estão conseguindo interpretar textos, com a qual concordo plenamente. Mas quero apresentar um outro problema, tão ou mais grave do que a dificuldade de interpretação de textos que o não entendimento geral das noções mais elementares da teoria dos conjuntos. Não se pode pertencer simultaneamente a dois conjuntos antagônicos (ou mutuamente exclusivos). Por exemplo, eu não posso ser gaúcha e amazonense ao mesmo tempo. A regra de formação do conjunto “pessoas gaúchas” é que elas tenham nascido no território do Estado do Rio Grande do Sul, assim como a regra de formação do conjunto “pessoas amazonenses” é elas terem nascido no Estado do Amazonas. Como ninguém pode nascer, simultaneamente, no Amazonas e no Rio Grande do Sul, ninguém pode ser simultaneamente gaúcha e amazonense. Agora eu já posso ser amazonense e manauara como também posso ser gaúcha e porto-alegresense. Pessoas nascidas na cidade de Manaus são um subconjunto do conjunto das pessoas nascidas no Amazonas, assim como pessoas nascidas em Porto Alegre são um subconjunto do conjunto das pessoas nascidas no Rio Grande do Sul. O que determina o conjunto é a regra de formação do conjunto. Nos casos que mostrei a regra determinante do conjunto é o estado da federação em que a pessoa nasceu, assim como do subconjunto a regra é a cidade do estado da federação em que a pessoa nasceu. Se a regra de formação do meu conjunto fosse “pessoas que estudam doenças tropicais” nele poderiam aparecer, lado a lado, a Dra. Jussara Nahib, amazonense de Manaus e a Dra. Dora Hartmann, gaúcha de Porto Alegre.
A regra de formação do conjunto “pessoas cisgêneras” é a conformidade, aderência e adequação da pessoa a uma das duas categorias oficiais de gênero existentes – homem-mulher ou masculino-feminino – para a qual ela é designada ao nascer, exclusivamente em função dela ser macho (ter um pênis) ou fêmea ter uma vagina. Ser uma pessoa cisgênera significa ter sido designada ao nascer para a categoria de homem ou mulher, o que se dá em função da sua condição de macho ou de fêmea – pênis ou vagina – e permanecer ao longo de toda a vida nessa designação. Em resumo, o conjunto de pessoas cisgêneras TEM APENAS DUAS CATEGORIAS – HOMEM e MULHER, assim designados ao nascer em função dos seus órgãos genitais e que assim permanecem ao longo da vida, sem nenhum desconforto ou alteração (pelo menos declarado e aparente).
A regra de formação do conjunto de “pessoas transgêneras” é a não conformidade, inadequação, desacordo e divergência da pessoa a uma das duas categorias oficiais de gênero existentes – homem-mulher ou masculino-feminino – para a qual ela é designada ao nascer, exclusivamente em função dela ser macho (ter um pênis) ou fêmea ter uma vagina. Ser uma pessoa transgênera significa ter sido designada ao nascer para a categoria de homem, o que se dá em função da sua condição de macho, e não querer viver de acordo com tal designação, o que pode ocorrer de formas muito variadas e pelos mais diversos motivos do mundo, configurando sempre uma TRANSGRESSÃO das normas de conduta de gênero fixadas pela sociedade. Ao contrário do conjuntos de pessoas cisgêneras, que tem apenas duas únicas identidades – homem e mulher - o conjunto de pessoas transgêneras contém UM NÚMERO INFINITO DE IDENTIDADES, ou melhor ainda, de TRANSIDENTIDADES (travesti, transexual, homem trans, andrógino, crossdresser, dragqueen, transformista, não-“binárie”, etc.). Toda pessoa cisgênera é uma seguidora da normas de gênero, assim como toda pessoa transgênera é uma infratora em alguma medida.
Da mesma forma que uma pessoa não pode ter nascido ao mesmo
tempo no Rio Grande do Sul e no Amazonas, alguém não pode ser ao mesmo tempo
cisgênero e transgênero, porque se tratam de dois grupos antagônicos. Eu não
posso ser genuinamente “homem” ou “mulher” sendo, ao mesmo tempo, uma pessoa
transgênera. Posso me autodenominar no máximo numa “transidentidade” de homem
transexual ou mulher transexual, porém jamais como homem e mulher no sentido
exato desses termos. Como eu posso ser transgênera e travesti, assim como eu
posso ser gaúcha e porto alegrense, pois travesti é um subgrupo de transgênero,
que se considera ter características próprias e muito específicas, embora, na
prática, nem sempre é tão claro assim. É muito comum a pessoa responder que é
de Porto Alegre, tendo, na verdade, nascido em Canoas... Afinal, é tudo na
região metropolitana de Porto Alegre, né?
Só para terminar, quero dizer que a Dra. Emily Salgado, patologista, mulher
cisgênera, nascida em Manaus, trabalha há anos com o Dr. Emanuel dos Santos,
também patologista, transgênero, homem transexual, nascido no Rio Grande do Sul
e ambos pertencem ao grupo de combate a doenças tropicais, órgão da OMS, que é
um organismo da ONU, sediado Em Genebra, na Suiça. Sem ter a mínima noção de
conjuntos, é muito pouco provável que a pessoa possa entender claramente o
texto que acabei de apresentar.
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