Desde o final do século XIX, o mundo ingressou num estrondoso e ininterrupto boom de tecnologia. As técnicas e suas aplicações mudam incessantemente, e com elas muda tudo à nossa volta, das formas de trabalho às formas de entretenimento. O que permanece imutável são as crenças e valores, individuais e coletivos, provocando um choque, cada vez mais maior, entre o mundo que existe e o mundo que as pessoas pensam que deveria existir.
Numa sociedade de tecnologia altamente progressista e mutante, a organização social – familiar e coletiva – permanece basicamente a mesma, inclusive contando com uma defesa intransigente de populações que, atemorizadas com as incessantes mudanças tecnológicas, tentam se agarrar de unhas e dentes a esquemas de vida, crenças e valores medievais, completamente divorciados da realidade contemporânea.
A negação da ciência, assim como a adoção de cultos religiosos obscurantistas e de defesa extremada de dogmas políticos retrógrados tornou-se um refúgio para as massas assustadas e despreparadas para lidar com tantas e tão contínuas mudanças tecnológicas. É a irracionalidade como último recurso para deter o curso inevitável das inevitáveis mudanças. Quem se nega a tomar vacina, expondo-se ao risco de um contágio que pode lhes custar a vida, e tornando-se ao mesmo tempo um vetor para a expansão de doenças, quer provar que é “totalmente livre” para decidir sobre sua própria vida, isso mergulhado até o pescoço nas modernidades avassaladoras de redes sociais e sistemas de controle altamente informatizados que lhe retiram toda e qualquer autonomia decisória sobre o que quer que seja.
Olhando de forma mais cuidadosa, o medo aparentemente insensato dessa gente não é tão insensato assim. Durkheim, o fundador da sociologia, formalizou a ideia de que sociedade é um conjuntos de normas de conduta individuais e coletivas, de caráter duradouro, que se sobrepõem à vontade individual de todos, organizadas e estruturadas com o propósito de manter as coisas dentro “dos eixos”. A conclusão óbvia é que, quando essas normas são colocadas em risco, passam a ser constantemente checadas e desconstruídas, coloca-se em risco a própria existência da sociedade. O problema é que gente assustada e medrosa, correndo o risco de se afogar, prefere agarrar-se ao primeiro objeto flutuante que aparecer na sua frente, do que enfrentar um oceano de ameaças e incertezas nadando com suas próprias forças.
Pessoas costumam ser muito mais preguiçosas do que imaginam os teóricos de ciência política. Assim é que, por medo de se afogarem, agarram-se exatamente àquilo que as está afogando: velhas estruturas sociais, políticas, econômicas, culturais e religiosas, completamente defasadas diante das mudanças tecnológicas que romperam – e corromperam – há muito tempo com as normas que costumavam reger as sociedades no tempo de Durkheim.
Desde o quarto final século XX, o sociólogo Zigmund Balman nos advertiu em todas as suas obras que estávamos já vivendo numa sociedade líquida, de amores líquidos, de relações líquidas, querendo dizer com isso que a solidez da sociedade que conhecíamos até então estava literalmente se desfazendo. Hoje, já em pleno século XXI, posso afirmar, com certeza, que o que já tinha se tornado líquido, para desespero total dos conservadores, está simplesmente se evaporando, desaparecendo, sem deixar nada no lugar.
Cumpre-se, com todas as letras, a profecia de Marx e Engels, contida no seu Manifesto Comunista: tudo que é sólido se desmancha no ar; tudo que é sagrado é profanado, e as pessoas estão finalmente forçadas a encarar com serenidade sua organização social e suas relações.
Infelizmente, o agente dessa imensa revelação pessoal, verdadeira catarse coletiva, não está sendo a revolução de valores, costumes e formas de produção e consumo - a mudança radical das formas de organização social -, mas a avalanche tecnológica que, em sua desembestada trajetória vai desconstruindo tudo que encontra pela frente.
PS - e que as pessoas sejam finalmente forçadas a encarar com serenidade sua organização social e suas relações...
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