segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Auto-engano: o risco de criar uma realidade ilusória

Trapacear com você mesma é a pior forma de auto-
engano que existe. Diante dela, todas as outras formas
de trapaça se tornam até irrelevantes.

Auto-engano é uma estratégia de refúgio e sobrevivência do indivíduo que, até certo ponto, pode ser mesmo bem sucedida. Como o próprio nome diz, auto-engano consiste em a pessoa criar enredos existenciais para enganar e ludibriar a si própria, com vistas a obter uma percepção mais confortável e aceitável da sua própria realidade, interior e exterior. 

Sempre que a pessoa se sente pressionada, ameaçada e desamparada dentro de uma realidade pouco amistosa ou acolhedora, auto-engano é um dos possíveis “refúgios do ego”, uma forma do ego se proteger para não ficar totalmente desmoronado. 

O auto-engano ocorre, na maioria das vezes, em nível inconsciente, sem que a pessoa, portanto, tenha consciência do engano que ela própria está se produzindo. Embora seja uma nítida estratégia de fuga psíquica da realidade, o auto-engano pode funcionar muito bem para muitas pessoas, durante até muito tempo, desde que elas não sofram nenhum “choque de realidade” capaz de abalar as muralhas protetoras do auto-engano. 

- “Tenho vivido maravilhosamente bem no meu casamento”, quando todo mundo percebe que a relação está cada vez mais insuportável e deteriorada.
- “Meu emprego é tudo de bom; meu chefe e meus colegas são simplesmente sensacionais”, quando qualquer pessoa pode constatar o ambiente de semi-servidão, opressão e distopia em que a pessoa tem vivido no trabalho.
- “Em vez de nos proteger de doenças, vacinas transmitem doenças”.
- “Estou vivendo muito bem sozinha; não preciso de ninguém”.
- “Esse governo veio para nos livrar do mal maior do comunismo”.
- “Fui ungida com a ‘graça” da Divindade”...

Por aí vai. Uma vez auto-enganada, a pessoa passa a enxergar realidades cor-de-rosa em situações existenciais absolutamente cinzentas, incômodas, intimidadoras e hostis. E ai de quem questionar a natureza fantasiosa e pouco convincente das suas “explicações”. Ai de quem apontar os fatos contundentes que estão à volta de um auto-enganador! Em vez de checar os fatos, a pessoa fará de tudo para rechaçar e desqualificar seus críticos, de modo a manter segura sua crença absoluta nos seus auto-enganos. 

O auto-engano está presente o tempo todo, em nós e à nossa volta, embora os auto-enganadores jamais estejam dispostos a reconhecer que estão se auto-enganando, que estão vivendo de fantasias que suas mentes criaram como forma de defende-los de uma realidade cruel e hostil. Mas como eu disse no início desse texto, até certo ponto o auto-engano é realmente capaz de proteger a pessoa do duro contato com realidades opressivas e estressantes. Por isso mesmo, a relutância e a resistência da pessoa auto-enganada em abandonar seus esquemas para “suportar” as duras realidades que está vivendo. 

O problema é quando a realidade dá um pontapé no traseiro da pessoa, causando-lhe pesados traumas.
- “Eu fui mandada embora do empresa que eu tanto defendia, apesar da rotina de horrores que eu suportava, calada”, ou seja, a empresa não era tão maravilhosamente boa como a pessoa fazia tudo para perceber e acreditar...
- “Peguei o meu marido me traindo com OUTRO na minha própria cama”, ou seja, o cônjuge não era a maravilha que a pessoa achava.
- “Minha mãe morreu de covid-19 porque não se vacinou, influenciada por mim”.
- “Naquele momento eu precisei de alguém ao meu lado e não tinha ninguém a quem recorrer. Ninguém se basta a si mesma”... 

Diante de traumas imensos e assustadores, que são proporcionais ao tamanho do auto-engano em que a pessoa vinha vivendo, ela é forçada a acordar de repente, ou melhor, como o auto-engano é em grande parte inconsciente, a pessoa é forçada a descobrir que estava dormindo, numa espécie de auto-hipnose, completamente alienada da sua real realidade, interior e exterior. 

Com suas ideias e práticas opressivas, completamente individualistas e egoístas, de que todo mundo tem que ser “mais”, jamais “menos”, de que todo mundo tem que ser “vencedor”, jamais “perdedor, a sociedade consumista neoliberal "de mercado" potencializou ao máximo o emprego de estratégias de auto-engano. Caso contrário, as pessoas ficariam muito mais loucasdo que já estão, "surtando" com muito mais frequência e intensidade. 

As redes sociais se tornaram o principal agente do auto-engano individual e coletivo. Espaço permanente para exibição da galeria de auto-enganos, em que pessoas insatisfeitas e infelizes mostram sorrisos, êxitos, vidas maravilhosas e “grandes” realizações, as redes sociais são o próprio veículo de propagação e reforço de engodos. 

Fazer análise é livrar-se de auto-enganos, apesar da frágil defesa que eles proporcionem em relação às duras realidades que você tem que enfrentar no seu dia-a-dia. Por mais eficientes que sejam durante um tempo, é importante saber que auto-enganos serão sempre percepções falsas e equivocadas da realidade, estratagemas que a pessoa emprega para tornar sua vida menos insuportável. 

Em um universo ideal de sonho e fantasia, auto-enganos podem até funcionar para sempre. Mas que, em um mundo imprevisível e totalmente mutável, vão se espatifar feito copo de vidro caído ao chão, quando forem duramente submetidos ao pesado e inevitável impacto da realidade.

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