terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Transamadurecer


Amadurecer é sempre uma palavra ambígua e capciosa quando aplicada à vida das pessoas, especialmente quando pretende significar crescimento, experiência e consciência que podem ser adquiridos com o avançar dos anos. Nada mais enganoso do que supor que mais idade corresponde a mais maturidade.

Maturidade não se alcança com a idade. Definitivamente, coisas como compostura, juízo e equilíbrio não devem ser vistos como atributos próprios da velhice. Conhecemos pessoas idosas que demonstram nos seus sentimentos, pensamentos e ações que o tempo não lhes acresceu nem uma grama de ponderação, discernimento e compreensão da vida. Como também conhecemos pessoas que, apesar de jovens, já alcançaram graus muito elevados de sensibilidade e sensatez.

Para a grande maioria das pessoas, amadurecer tem apenas o sentido agrícola do termo, que é deixar de ser fruta verde para tornar-se fruta madura – maturar –, nada mais. Nenhuma evolução nem revolução no modo de vida, nenhuma mudança comportamental significativa que leve a pessoa a desenvolver os atributos de sabedoria, ponderação, prudência e equilíbrio comumente associados à velhice, embora estejam longe de ser encontrados em alguém somente pelo fato de esse alguém ser idoso.

Embora amplamente difundida, maturidade é meramente uma idealização, um discurso enfadonho, do grau que o desenvolvimento humano deve atingir na velhice. Amadurecer, no sentido que o imaginário social dá ao termo, é algo muito maior, muito mais amplo e profundo do que uma pessoa simplesmente envelhecer. Tanto para pessoas transgêneras quanto para pessoas cisgêneras, os desafios de amadurecer são basicamente os mesmos, envolvendo os mesmos desafios e enfrentamentos.

Alguém pode contra argumentar que não: que o amadurecimento de pessoas transgêneras – o transamadurecer – é necessariamente distinto do amadurecer de pessoas cisgêneras em virtude das enormes pressões sociais e sofrimentos psíquicos a que uma pessoa transgênera é submetida ao longo da vida. Infelizmente, não, pelo menos nesse aspecto, pois sofrimento não amadurece ninguém sendo, no máximo, estímulo para a pessoa amadurecer, desde que ela o encare como fator de crescimento e não como fator de desânimo e desespero.

Muitas vezes o sofrimento serve unicamente para manter a pessoa estacionada na sua imaturidade. Em vez do sofrimento transformar a pessoa em alguém mais forte, mais autocentrada e mais resistente à dor, pode transforma-la em alguém ressentida, amarga e vingativa ou, pior ainda, tristemente resignada e submissa ao destino que a vida lhe impôs.

A natureza altamente contestatória e revolucionária da transgeneridade, sim, é um fator capaz de diferenciar radicalmente o transamadurecimento do amadurecimento de pessoas cisgêneras. A existência transgênera é uma jornada repleta de pesados e intensos desafios de crescimento, um convite permanente a vivências muito desafiadoras e profundas, em que a pessoa deve entender, aceitar e transformar sua transgressão de gênero em genuína transformação e desenvolvimento individual.

Embora seja direito de qualquer pessoa transgênera buscar ter o corpo que está presente no seu desejo, a transformação de que estou falando não guarda nenhuma relação direta com nenhum procedimento estético e/ou de reaparelhamento genital. Sedutoramente oferecido pelo biopoder como forma de readequação corporal da identidade de gênero com a qual a pessoa se identifica, tais procedimentos visam, na realidade, a criação de corpos dóceis, estereotipados e normalizados que constituem um tentador passaporte para o reingresso, triunfal e definitivo, da pessoa transgênera ao exercício e pleno gozo do dispositivo binário de gênero, do qual ela foi arbitrária e sumariamente arrancada e expelida, em virtude da sua transgressão das normas de gênero.

Antes de ser homem ou mulher, uma pessoa transgênera é uma pessoa transgênera, alguém que transgride as normas de enquadramento e de conduta do dispositivo binário de gênero. O primeiro desafio do transamadurecimento é compreender e aceitar que a ordem vigente, construída e mantida com base no binarismo de gênero homem-mulher, jamais aceitará a condição transgênera, como fato normal da sociedade, pelo menos não em futuro tão próximo. Por mais que a pessoa transgênera corresponda aos estereótipos de homem e de mulher vigentes na sociedade, será sempre reconhecida como transgênera, alguém que está transgredindo o sagrado dispositivo binário de gênero vigente na nossa sociedade.

Binarismo de gênero e transgeneridade são dois polos opostos e irreconciliáveis. Transamadurecimento implica em compreender e aceitar a transição de gênero como subversão, contestação e resistência às normas de gênero, não como uma obediência cega às arbitrárias e opressivas práticas discursivas de gênero, absolutamente impiedosas e hostis, por princípio, a toda e qualquer transidentidade.

Que amadurecimento pode existir em entender a transição de gênero como um ato de rendição incondicional ao dispositivo binário de gênero? Que amadurecimento pode haver em esvaziar todo o conteúdo subversivo e potencialmente explosivo da transgeneridade, em nome de ser integralmente aceita na categoria de gênero com a qual a pessoa se identifica? Que amadurecimento pode haver em reconhecer legitimidade e querer participar de um dispositivo de gênero que não reconhece legitimidade às transidentidades, que marginaliza e expurga pessoas que ousam apresentar-se numa identidade de gênero diferente da que lhe foi atribuída ao nascer, exclusivamente em razão do seu órgão genital.

Transamadurecimento implica em descobrir que a pessoa transgênera pode ser perfeitamente homem, mulher ou outra identidade qualquer sem ter que se submeter nem à hierarquia nem às normas de conduta de gênero. Que, muito pelo contrário, ela pode ser uma desconstrutora das práticas discursivas de gênero que dividem as pessoas em duas e apenas duas categorias: homem ou mulher.

Transamadurecimento implica em ser capaz de distinguir identidade de gênero de papéis de gênero. Com o objetivo de delimitar, artificialmente, funções sociais “masculinas” de funções sociais “femininas”, a sociedade também atrela ao órgão genital de nascimento – de macho ou de fêmea – todos os papéis, atributos e expectativas de desempenho, exatamente como faz com gênero e orientação sexual. Contudo, ser pai ou ser mãe não são meros papeis sociais, arbitrariamente estabelecidos pela ordem vigente. A revolução feminina dos últimos cem anos provou, com toda a proficiência necessária, que identidade de gênero e papéis sociais não são a mesma coisa e muito menos dependem um do outro. Não tem o menor fundamento, como não faz o menor sentido, determinar que ser pai é uma função exclusivamente masculina ou ser mãe é uma função exclusivamente feminina. Transamadurecimento implica em reconhecer que alguém pode ser pai, sem ser necessariamente homem, como pode ser mãe, sem ser necessariamente mulher.

Transamadurecimento implica na pessoa transgênera livrar-se do jugo do gênero, em vez de passivamente se submeter a ele, em nome de pertencer a um clube que nunca a quis, que nunca vai querê-la, como sócia. A menos que se mude o sistema, não importa o que a pessoa transgênera faça, ela continuará sempre sendo alguém que transgride as normas de gênero.

Ninguém nasce num “corpo errado”. Nunca foi propósito da Natureza fazer alguém se sentir impostora dentro do próprio corpo. Nada mais imaturo do que acreditar que eu não sou eu porque eu não tenho um corpo que me permita ser quem eu sinto que sou. O corpo que eu tenho é o corpo que eu sou – a sociedade, hipócrita, que chupe essa manga. Uma ideia absurda como essa tem sua origem nos discursos de gênero em vigor na sociedade, que obrigam as pessoas, do ventre ao túmulo, a se adequarem a dois únicos “perfis de gênero” – as tão famosas quanto execráveis “masculinidade” e “feminilidade” – totalmente “fake”, arbitrários e artificiais.

Trasamadurecimento implica em livrar-se desses discursos, em “sambar” na cara deles, com a elegância da porta-bandeira e do mestre-sala de uma escola de samba chamada Consciência-de-Si-Mesma.

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