quarta-feira, 2 de março de 2022

Distúrbios mentais: sobre sua natureza e formas de tratamento


Trepanação craniana - Hieronymus Bosch (circa 1494)
O estigma da “doença mental” alimenta não só a medicina “psico-curativa” quanto a poderosa indústria de medicamentos. Afora os 5% da população que possuem transtornos mentais de natureza estrutural (deficiência de hormônios, de neuro-transmissores, de ligações neurais, etc.), 95% da população sofrem de uma doença psíquica chamada “vida em sociedade”. Aqui, a doença não é “no” indivíduo, mas “na” sociedade. É a sociedade que está doente, com seus valores, normas, costumes e tradições, seus estilos de vida altamente competitivos, seus ritmos frenéticos, suas desigualdades, suas injustiças sociais, suas exigências sobre-humanas feitas a pessoas de carne e osso. 


Não acho que qualquer pessoa seja candidata a tratamento psiquiátrico. Não se deve eleger a psiquiatria como primeira forma de abordagem clínica, a menos que a pessoa esteja naqueles 5% da população que possui alguma deficiência de processamento mental de cunho estrutural, ou que tenha passado recentemente por sérios traumas existenciais com os quais não esteja dando conta de lidar, que tenham tornado sua vida insuportável (e até indesejável), alterando substancialmente o seu metabolismo, seu ritmo circadiano, seu grau de prontidão, de agressividade e de auto-controle, incapacitando-a para uma vida “normal”. 

Para esse público, a clínica psiquiátrica é plenamente recomendada, com o suporte necessário de medicamentos. Mas deve ser acompanhada de apoio sócio-emocional competente e contínuo, durante todo o tratamento, sem o que o processo de cura pode se “desbandeirar” de muitas maneiras, com a pessoa tornando-se tão somente usuária inveterada de “drogas legalizadas”, adquiridas, inclusive, depois de um certo tempo, sem nenhuma participação médica ou, pior, desenvolvendo graves “sequelas estruturais”, tanto pela falta de tramento sócio-psíquico adequado e competente, quanto pelo uso intensivo (e abusivo) de medicamentos. 


Minha vivência na clínica mostra que a maioria absoluta dos casos pode ser tratada com apoio psíquico. Mas isso vai depender de profissionais que entendam que a doença não está na pessoa e sim na sociedade. E que, portanto, cabe ajudar o indivíduo a desenvolver formas de lidar com a sociedade que aí está, do jeito que ela é, que ele não poderá de maneira alguma alterar de forma unilateral e isolada. De novo, aqui não é o indivíduo que está doente, mas a sociedade. Uma visão bem diferente de querer patologizar e tratar o indivíduo como doente. Infelizmente, uma posição muito comum entre profissionais de saúde mental. Quadro: Hieronymus Bosch, Trepanação craniana (circa 1494), técnica usada na idade média/renascença para aplacar transtornos mentais.

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