IDENTIDADE DE GÊNERO não é algo inexoravelmente ligado à genética, como é o caso do SEXO GENITAL, mas algo ligado ao próprio processo de socialização dos seres humanos, que distribui os indivíduos da nossa espécie em duas únicas categorias – masculino e feminino – em função única e exclusivamente do órgão genital que apresentam ao nascer. Assim, se a pessoa tem um pênis, é arbitrariamente designada como homem, assim como, se tem uma vulva, é arbitrariamente designada como mulher, independentemente de quaisquer outros fatores e influências, e completamente às revelia do próprio indivíduo, a quem não é dado nenhuma escolha.
A hipótese, absurda, é que indivíduos com pênis irão se comportar naturalmente como homens, assim como indivíduos com vulva irão se comportar naturalmente como mulheres, embora o fato de ter nascido macho ou fêmea não guarde nenhuma relação direta e absoluta com o desempenho que a sociedade espera de um homem e de uma mulher. Dessa forma, ser homem e ser mulher é muito mais um longo e opressivo aprendizado social do que um inexorável determinismo da natureza.
Se as pessoas já nascem com uma carga genética para ser macho ou para ser fêmea, o mesmo não se pode dizer em relação a serem homem ou mulher, pois aqui o que conta é o que elas APRENDERAM A SER, a partir da sua IDENTIFICAÇÃO COM MODELOS SOCIAIS DE DESEMPENHO MASCULINO E FEMININO.
As pessoas não são homem ou mulher PORQUE NASCERAM homem ou mulher: a gente nasce MACHO ou FÊMEA (ou intersexuado ou nulo) mas PORQUE FORAM ARBITRARIAMENTE ESCALADAS PARA SEREM HOMEM OU MULHER A PARTIR DO SEU ÓRGÃO SEXUAL EXPOSTO AO NASCER.
Como diria a grande Simone de Beauvoir, ninguém nasce mulher (ou homem): aprende a ser.
É de tanto a sociedade repetir na cabeça de uma pessoa que ela é homem ou mulher que ela acaba realmente se tornando homem ou mulher. Assim, no caso do homem e da mulher, não podemos falar em herança genética, em geneticidade, como no caso do macho e da fêmea, mas em herança cultural, em performatividade. Enquanto geneticidade está inexoravelmente ligada ao domínio da natureza, performatividade está inexoravelmente ligada ao domínio da sociedade. De novo, Simone: ninguém nasce mulher (ou homem): aprende a ser.
O grande e infame truque oculto no processo de transformação do macho biológico em homem e da fêmea biológica em mulher é que a herança cultural – performatividade – já vem embutida na herança biológica – geneticidade –, o que é uma grave e absurda mentira.
Os modelos do que é ser homem e do que é ser mulher foram arbitrariamente estabelecidos pela sociedade e não pela natureza: não vêm juntos com os modelos biológicos de ser macho e ser fêmea que estão acoplados à nossa genética.
Assim, ser homem e ser mulher não passa de um aprendizado radical e compulsório do que é ser homem e ser mulher, de acordo com a época e o lugar de cada sociedade humana. Você DEVE SER homem, ou seja, performatizar o script de homem estabelecido pela sociedade, PORQUE você nasceu macho – e por nenhuma outra razão. Acontece que “outras razões” existem e são muito mais sólidas do que a imposição arbitrária, autoritária, arrogante e unilateral da sociedade de que machos DEVEM SER homens e fêmeas DEVEM SER mulheres.
Performatizar scripts, viver papeis, depende, antes de tudo, que haja uma IDENTIFICAÇÃO BÁSICA do ator com o personagem. A sociedade parte da hipótese, absurda, de que existe uma IDENTIFICAÇÃO NATURAL do macho com o script social de homem, o que é, naturalmente, uma grosseira mentira.
Meninos não vestem azul porque isso já está registrado no seu DNA, nem meninas vestem rosa por uma grave e inorável determinação da natureza. Meninos vestem azul e meninas vestem rosa porque a sociedade – e não a natureza – estabeleceu que eles devem vestir azul e rosa, respectivamente.
Como não se trata de um determinismo da natureza e sim de um dispositivo da sociedade, vai acontecer, sim, e acontece o tempo todo, de machos QUE NÃO SE IDENTIFICAM com azul, que preferem rosa, assim como de fêmeas que NÃO SE IDENTIFICAM com rosa, que preferem azul.
A performatividade é sempre precedida por um PROCESSO DE IDENTIFICAÇÃO do indivíduo com o que a sociedade determina que é homem ou mulher. Não se trata de escolha, mas de IDENTIFICAÇÃO. Aqui, aliás, a escolha já foi feita previamente pela sociedade quando rotulou seus machos biológicos de homem e suas fêmeas biológicas de mulher. E viu que essa simples rotulação não funcionou sem uma permanente vigilância quanto ao desempenho de cada um nos papeis sociais que lhe foram arbitrados.
Não fosse o caráter opressivo e repressivo da educação, dificilmente haveria tantas “identificações forçadas” como se vê nesse mundo. Não fosse a permanente “vigilância social” para que machos biológicos se comportem como homens, e fêmeas biológicas como mulheres, não haveria multidões de machos e fêmeas aparentemente tão bem ajustados aos papeis e performances previamente estabelecidos pela sociedade – e que não guardam nenhum relação com qualquer tipo de herança biológica.
Pessoas transgêneras são aquelas que de alguma forma NÃO SE IDENTIFICAM com os modelos socialmente impostos de homem e de mulher. Que, tendo nascido machos, identificaram-se de forma contundente com a feminilidade ou que, tendo nascido mulheres, identificaram-se muito, mas muito mais mesmo, como a masculinidade, modelos esses vigentes na sociedade, na época e no lugar em que nascem/vivem.
Por isso, eu afirmo e reafirmo insistentemente que eu não nasci NO CORPO ERRADO, mas na SOCIEDADE ERRADA. Numa sociedade que arbitrariamente determina que todos os machos devem ser homens e todas as fêmeas devem ser mulheres. Eu nasci macho e nunca me identifiquei com o modelo de masculinidade vigente na sociedade em que eu vivo. Minha identificação sempre esteve direcionada à feminilidade.
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