sexta-feira, 21 de abril de 2023

A clínica da culpa (culpa e ideal de perfeição)

O ideal de perfeição está na raiz de todo sofrimento psíquico. Desde muito cedo, somos treinadas para ser campeãs em tudo – na inteligência, na beleza, na riqueza, no sucesso, no poder. Como parte desse treinamento sinistro, somos induzidas a acreditar que só seremos amadas pelas outras pessoas se preenchermos todas as exigências de perfeição que nos são impostas pela sociedade. Que as outras pessoas só amam pessoas bem sucedidas, ricas, inteligentes, esteticamente bonitas e socialmente ajustadas aos padrões de conduta em vigor. Que pessoas malsucedidas, burras, feias, pobres e socialmente desajustadas simplesmente não têm lugar nesse mundo, não são dignas de aceitação na sociedade. 

Ao mesmo tempo que vamos internalizando os padrões de perfeição que nos são impostos pela sociedade, vamos também descobrindo, com imensa dor, o quanto somos criaturas imperfeitas, limitadas, vulneráveis e inconstantes, o quanto estamos incapacitadas para atender as imensas “demandas de perfeição” que foram colocadas em nossas costas. O quanto estamos longe de ser tão inteligentes, tão belas, tão ricas, tão bem sucedidas, tão famosas e tão bem ajustadas em relação aos padrões de perfeição que nos foram ensinados. 

Diante dessa extremamente incômoda descoberta, é inevitável o surgimento de um agudo “senso de inadequação”, conhecido como culpa, resultante do medo e da vergonha de não estar correspondendo ao ideal de perfeição que nos é imposto pela sociedade. Uma vez capturada pela culpa, raramente a pessoa questiona as condições que a sociedade lhe oferece para atender os padrões que lhe foram impostos e, mais raramente ainda, questiona o próprio ideal de perfeição estabelecido pela sociedade. 

Em lugar de um posicionamento crítico das formas de opressão social, as pessoas simplesmente se julgam culpadas pelo seu insucesso em atender o ideal de perfeição da sociedade, passando incansavelmente a se punir, ou seja, a sofrer. Prisioneira de si mesma (em nome da sociedade...), a pessoa culpada vive num clima de permanente tormento psíquico, aterrorizada, de um lado, com a terrível noção de fracasso pessoal e, de outro, imobilizada por uma tremenda incapacidade de ação, diante do desejo de atender – sem poder – o ideal de perfeição que lhe foi imposto pela sociedade. 

A clínica da culpa consiste em levar a pessoa a admitir que, na realidade, ela não tem culpa nenhuma. Que ela tem investido toda a sua energia num jogo totalmente errado e fora de propósito, concebido pela sociedade como forma de manter a dominação e o controle sobre os seus membros. Que livrar-se da culpa implica em sair do “jogo da perfeição” e passar a jogar o “jogo da existência”, onde cada pessoa vale pelo que é – e não pelo que “deveria ser”. 

Naturalmente, a “cura” da culpa implica na constituição de uma ética pessoal, em que o indivíduo se torna capaz de fazer – e honrar – suas próprias escolhas e os seus próprios padrões, em lugar de seguir, de forma inconsciente e inconsequente, as escolhas e os padrões que lhe foram impostos pela sociedade.

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